Heródoto (Feb 2023)
A anta e o valentão
Abstract
Primeiras estórias é um volume de contos de J. Guimarães Rosa (1962), alguns deles usando de maneira empenhada a tradição clássica. “Famigerado”, por exemplo, evoca o episódio de Polifemo no canto 9 da Odisseia. O conto que eu discuto é “Fatalidade”, que envolve a Ilíada, especialmente o duelo entre Heitor e Aquiles. Ele conta a história de um estranho, o frágil José de Tal, de apelido Zé Centeralfe (trocadilho com center-half), que chega à casa do delegado local, nomeado Meu Amigo pelo narrador. Zé pede ajuda à autoridade para resolver seus problemas com o valentão Herculinão, o qual não para de importunar a esposa de Zé. O casal mudou duas vezes de povoado e acaba na cidade do delegado, o qual, durante boa parte desse curto conto, sugere por alguns modos não-verbais que José deveria matar o valentão. Mas, diferente de The man who shot Liberty Valance, duas são as armas que, quase ao fim, matam o valentão, a de Zé e a do Delegado, ambas disparadas virtualmente ao mesmo tempo. Imediatamente antes de Zé deixar a casa do delegado, este refere-se àquele como “nosso necessitado Aquiles”, explicitando a referência potencial à Ilíada, confirmada pelo papel que o delegado tem no tiroteio final como Atena. Mas ele também evoca Zeus na forma como fala sobre o destino. Os críticos divergem sobre o ponto de vista do narrador (cinismo? condenação crítica), todavia, para leitores que estabelecem o paralelo com a Ilíada (Aquiles perde Pátroclo por meio de seu próprio erro), a perda de José – ele perde sua tênue esperança na eficácia de uma lei impessoal – é evidenciada. Não há lugar para a tática da anta – esconder-se, mesmo que você seja grande – nem para um valentão. Ao mesmo tempo, Rosa talvez convide seus leitores a comparar o conto a seu grande épico Grande sertão: veredas ou reavaliá-lo à luz da sua obra posterior, contos gradualmente menores e mais elusivos.
Keywords