Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (Apr 2021)

Editorial

  • Alberto Carvalho Amaral

Journal volume & issue
Vol. 3, no. 1
pp. 9 – 16

Abstract

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Em seu primeiro número do terceiro volume, iniciando os trabalhos do ano 2021, a Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF) recebeu contribuições relativas ao dossiê temático Direito, segurança e tutela das liberdades: mecanismos jurídicos para garantias individuais e coletivas. No contexto de adoção de medidas emergenciais e restrições diante do cenário pandêmico da Covid-19, tem surgido, com certa recorrência, discussões sociais e jurídicas sobre a amplitude e limitações possíveis de direitos fundamentais nesse contexto. É indiscutível, diante de um cenário de mortalidade que ainda se apresenta absurdo, que as medidas sanitárias com mais eficiência para a contenção do alastramento da pandemia necessitam de uma série de ações públicas que acabam por desnudar efeitos nas esferas privadas, econômicas e culturais, resultando, disso, resistências e interpelações jurídicas sobre a legalidade, constitucionalidade das medidas, assim como de critérios essenciais para as implementação de políticas necessárias para a contenção do vírus e para o resguardo do sistema sanitário nacional. Não por outro motivo, o Supremo Tribunal Federal já foi acionado sobre a campanha publicitária divulgando notícias falsas sobre a pandemia (ADPF n. 669, rel. Min. Luis Roberto Barroso)[1]; a competência e possibilidade de implementação de medidas sanitárias por Estados, Distrito Federal e municípios (ADPF n. 672, rel. Min. Alexandre de Moraes)[2]; competências constitucionais a respeito de limitação de trânsito de pessoas no transporte intermunicipal (ADI n. 6.343, rel. para acórdão Min. Alexandre de Moraes); competência dos Estados, Distrito Federal e Municípios para dispor sobre medidas mais restritivas que as impostas pela União (ADI 6.341, rel. para acórdão Min. Edson Fachin), possibilidade de medidas compulsórias para a vacinação e de efeitos sancionatórios para os que não se vacinarem (ADIs n. 6.586 e 6.587, rel. Min. Ricardo Lewandowski, e ARE n. 1267879, rel. Min. Roberto Barroso)[3]; restrições de eventos e cultos religiosos presenciais e acarretando aglomeração (ADPF n. 811, rel. Min. Gilmar Mendes). As decisões do STF têm discutido, essencialmente, a necessidade de se compreender o modelo federativo de competências entre União, Estados e Municípios, sem preponderância de qualquer ente em detrimento da atribuição sanitária para adoção de medidas urgentes em face da pandemia do Covid-19. As decisões também trazem, entre seus dizeres, textos apontando para a gravidade do cenário sociojurídico brasileiro e mundial, ressaltando a relevância desses temas e de medidas imprescindíveis para a diminuição de contágio. Ao lado desses temas, que foram tópicos para notícias e discussões inúmeras, também é relevante apontar a grande atuação da Suprema Corte em assuntos outros, ainda relacionados à Covid-19, em cerca de 40 temas de viés econômico (STF, 2021), discutindo, por exemplo, a não adesão a planos estaduais por municípios, proibição de transporte fluvial de passeio no Estado do Amazonas, decretos de flexibilização do isolamento social do Estado do Rio de Janeiro, afastamento de algumas exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Diretrizes Orçamentárias, requisições administrativas de Estados, Distrito Federal e Municípios não dependerem de análise ou autorização do Ministério da Saúde, discussões sobre requisição de insumos estaduais pela União, inclusive de respiradores, suspensão de pagamento de parcelas de dívidas públicas dos estados com a União, distribuição de vacinas diretamente por Estados e Distrito Federal, discussões sobre a amplitude de limitações trabalhistas por medidas provisórias editadas pelo Poder Executivo, sobre a limitação da atuação de auditores fiscais, determinação de implementação de um plano de barreiras sanitárias para a proteção da população indígena. A lista é apenas exemplificativa[4], já que muitas foram as temáticas decididas pela Suprema Corte e que tiveram impacto durante a presente pandemia. A quantidade de ações e decisões de âmbito nacional tomadas pelo STF indicam, também, que os temas, além de relevantes, representam o confronto de pensamentos, ideias e concepções de mundo, que marcam a sociedade brasileira e que denotam, com força, a polarização de assuntos e que tem agravado o efeito devastador da pandemia. Em que pese o notório avanço científico que possibilitou, em pouco tempo, a identificação, reconhecimento, testagem em massa, adoção de medidas sanitárias em nível global e a produção de vacinas, com técnicas diversas, em tempo recorde, a ignorância e o “reencantamento do mundo” se apresentam[5]. O crescimento de redes de intolerância, exaltando informações falsas e distorcendo achados científicos, ao lado do crescimento de induzimento ao uso de medicamentos não recomendados e não eficazes – e pior, que possuem potencialidade de serem prejudiciais –, marcam um momento histórico em que vozes antivacinas, anticiência, anti-humanitárias se apresentam pela vascularidade, informalidade, impessoalidade e (aparente senso de) irresponsabilidade das redes de comunicação[6]. O contraditório momento intensifica-se pela negação da gravidade e das medidas científicas sobre a pandemia, que tem potencial para agravar ainda mais o cenário social. Diante da inexistência, até o presente momento, de medicamentos capazes de evitar a contaminação e sua propagação, o enfrentamento à pandemia exige a adoção de cautelas necessárias de distanciamento social, utilização de máscaras eficientes para a filtragem, bem como da necessidade de ampliação da vacinação para toda a população. Porém, com o descumprimento de medidas de isolamento, o não-uso de máscaras e o apelo para que não se vacinem, tudo sobre a falsa premissa da dicotomia entre saúde e economia, vidas marginalizadas e vulnerabilizadas são expostas, ainda com mais gravidade. A falência dos sistemas de saúde de países periféricos, inclusive do Brasil, dá notas de que, apesar de o mecanismo de contaminação não distinguir entre camadas sociais, seus efeitos são mais tormentosos com os mais pobres, os vulnerabilizados, os excluídos. As implicações socioculturais da contaminação que agravam o cenário de países em desenvolvimento são indiscutíveis, eis que, “em tempos de pandemia, as estruturas tornam-se ainda mais condicionantes e seus efeitos perniciosos são ainda mais deletérios” (SOUSA JUNIOR, RAMPIN, AMARAL, 2021, p. 31). O Covid-19 está afligindo milhares de famílias brasileiras, vitimizadas pelo falecimento de seus entes queridos – até a presente data, de acordo com dados oficiais divulgados por autoridades públicas, o número de falecimentos no Brasil já se aproxima de 400.000 pessoas –, e já é apontado, como novo polo de contaminação e mortes a Índia, que, apenas no dia de ontem – esta apresentação foi escrita no dia 23 de abril de 2021 – já comunicou 314.835 novos casos, com mais de 2 mil mortes diárias e esgotamento de vagas de hospitais, de cemitérios e crematórios (ÍNDIA..., 2021a; ÍNDIA..., 2021b; COVID..., 2021). Também apontam crescimento relevante de infectados e mortos a Turquia, Argentina, Irã e Colômbia (PUXADO..., 2021), indicando novas cepas do vírus, pelo menos mais transmissíveis e que apontam para uma possível permanência do cenário pandêmico nos próximos meses ou ano(s) (VARIANTE..., 2021). Enfim, as questões relacionadas à Covid-19, no âmbito de um país marcado sensivelmente por ausência de medidas efetivas para a implementação de rígidas políticas de isolamento social e de vacinação em massa, contribuem para o acirramento de ânimos e temas jurídicos a serem enfrentados pelo sistema judicial. E seus reflexos são mais graves e injustos para os mais pobres, para os mais fragilizados, para os mais carentes e debilitados, enfim, para a parcela populacional que a Constituição da República atribuiu a defesa, em amplo sentido, à Defensoria Pública brasileira (artigo 134), como verdadeira custos vulnerabilis (GONÇALVES FILHO; ROCHA; MAIA, 2020) e concretizadora do princípio democrático apesar dos vieses econômicos, de defesa dos direitos humanos essenciais de forma contra hegemônica (SUXBERGER; AMARAL, 2020), apostando por sua concretização pelas vias não usuais dos afetos, dos contatos, da sinestesia (SÁNCHEZ RUBIO, 2007), que pode ser objetiva por uma assistência jurídica afetiva (AMARAL, 2017, p. 345). Essa temática, assim, é cara para a Defensoria Pública e motiva os esforços para o advento deste número da Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal. O presente dossiê, para além de discutir os vieses jurídicos da pandemia da Covid-19, busca trazer discussões outras que ainda se mostram relevantes no contexto sociojurídico nacional e que marcam dissensos sobre âmbitos de atuação aptos para a defesa de direitos e garantias individuais e coletivos. Desigualdade no acesso a bens e direitos, inclusive o indispensável acesso à justiça – acesso usualmente compreendido formalmente, mas que evidentemente não se esgota nas medidas processuais possíveis em procedimentos judiciais, indagando-se, também, a que justiça se tem acesso, a que custo, a que tempo –, implementação de políticas públicas de inclusão para os afastados tecnologicamente, o ser e o agir em momentos de pandemia, de instabilidade política, de caos social. No artigo Crime de tortura como ato de improbidade administrativa: uma questão de juridicidade, Rafael dos Reis Aguiar, a partir da análise da Lei n. 9.455/1997, irá refletir sobre razões jurídicas para a configuração, como improbidade administrativa, de atos de tortura praticados por agentes públicos, especialmente como ações desumanas, incompatíveis com o Estado democrático de Direito e que nega pressupostos essenciais da modernidade. Ana Carolina Barbosa Pereira, em seu artigo A falta de isonomia na concessão de prisões domiciliares no contexto da pandemia, irá se debruçar sobre relevante aspecto agravado durante a situação anômala gerada pela Covid-19 no Brasil, eis que o encarceramento em massa e as condições deploráveis dos estabelecimentos prisionais, em regra, no bojo de medidas incentivadas pelo Conselho Nacional de Justiça, indicariam a premente necessidade de substituição de medidas restritivas de liberdade por prisões domiciliares, e que o distanciamento entre a Resolução n. 62, do CNJ, e as decisões judiciais, contrárias, bem como o efeito backlash, no legislativo, afrontariam disposições internacionais de direitos humanos. Em Multiparentalidade: a família e a filiação como constructos sociais em permanente remodelagem e alguns desdobramentos no âmbito sucessório, Leonardo Weber Ribeiro Araújo e Vanessa de Oliveira Rodrigues discutem a multiparentalidade e as consequências de seu reconhecimento jurídico, especialmente na sucessão de parentes e concorrência com cônjuge(s) supérstite(s). Comércio digital e proteção de dados: a era do Big Data, escrito por Giselle Borges Alves e Rodrigo Teixeira de Souza, irá ampliar o conhecimento sobre o fenômeno do Big Data, as mudanças implicadas nas relações de consumo e implicações em face da Lei Geral de Proteção de Dados, justamente por uma reinterpretação dos direitos da privacidade nas relações comerciais entabuladas. Com a premissa de investigar a efetividade do controle judicial na apreensão de jovens em conflito com a Lei, Hugo Fernandes Matias, Adriana Peres Marques dos Santos e Camila Dória Ferreira, em O controle judicial imediato de apreensões de adolescentes e jovens no Brasil, apontam que o modelo estatal brasileiro está dissociado da normativa internacional e de outros países da região, o que resultaria em proteção interior à usufruída pela população adulta, o que seria um contrassenso. Com o objetivo de apresentar e criticar os resultados de um projeto voltado para homens autores de violência de gênero, Roberta de Ávila Silva Porto Nunes, em Grupos reflexivos virtuais para homens autores de violência doméstica na pandemia: o projeto RenovAção da Defensoria Pública do Distrito Federal, discorre sobre as premissas teóricas e fáticas que embasaram essa iniciativa e como essa tentativa de abordagem não usual poderia impactar positivamente nas relações familiares. Encerrando o presente número, A evolução da fraternidade como categoria jurídico-constitucional no Supremo Tribunal Federal: análise da ADI 3510 e da Ação Popular 3388, de autoria de Marcela Almeida Nogueira Carvalho, analisando duas relevantes decisões da Corte Suprema brasileira, evidencia o relevante assento da fraternidade, enquanto categoria humanizadora e ampliatória do acesso à justiça. A Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal mantém o convite e o interesse em receber contribuições que indaguem cientificamente o status quo e evidenciam os vieses jurídicos e socioculturais imprescindíveis para compreender (ou buscar compreender) a realidade e as dinâmicas que se impõem, inclusive diante da pandemia e da emergência de modificação de rotinas e convivências. Alberto Carvalho Amaral Editor-chefe [1] O STF assentou, nesse tema, que, em decorrência dos princípios da prevenção e da precaução (art. 225, CF), usualmente relacionados a medidas ambientais, “na dúvida quanto à adoção de uma medida sanitária, deve prevalecer a escolha que ofereça proteção mais ampla à saúde” e que a “disseminação da campanha ‘O Brasil Não Pode Parar’ que já se encontra em curso (...) [é necessário e urgente] evitar a divulgação de informações que possam comprometer o engajamento da população nas medidas necessárias a conter o contágio do COVID19, bem como importância de evitar dispêndio indevido de recursos públicos escassos em momento de emergência sanitária”. [2] Foi, assim, reconhecido e assegurado que “o exercício da competência concorrente dos Estados, Distrito Federal e Municípios, cada qual no exercício de suas atribuições e no âmbito de seus respectivos territórios, para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia, tais como, a imposição de distanciamento/isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outras, sem prejuízo da competência geral da União para estabelecer medidas restritivas em todo o território nacional, caso entenda necessário, ressaltando-se, como feito na concessão da medida liminar, que a validade formal e material de cada ato normativo específico estadual, distrital ou municipal poderá ser analisada individualmente”. [3] No agravo no recurso extraordinário 1267879, ficou decidido pela Corte que “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”. [4] Veja-se, a esse respeito, a síntese dos processos analisados pelo STF durante a pandemia em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462122&ori=1. [5] A expressão “reencantamento do mundo” refere-se, como é possível inferir, a um suposto reverso ao conceito de desencantamento do mundo, categoria utilizada por Max Weber como “grande processo histórico-religioso (...) que teve início com as profecias do judaísmo antigo e, em conjunto com o pensamento científico helênico, repudiava como superstição e sacrilégio todos os meios mágicos de busca da salvação” (WEBER, 2004, p. 96). O desencantamento, que marca a sociedade com maior aderência ao capitalismo – “toda vez que a riqueza aumenta, a religião diminui na mesma medida” (COELHO; BANDEIRA; MENEZES, 2000, p. 18), é uma síntese histórica da eliminação do desconhecido mágico, ritual e sobrenatural (NOBRE, 2006), costumes e crenças tradicionais por uma prática religiosa marcada pela racionalização e pela secularização. Agora, o mundo se reencanta pela oposição pueril, pelas fake news, pelos discursos contra a ciência, antipáticos ao pensamento científico e à racionalidade não-religiosa. A força de reencantar-se parece depender de um desprezo pela ciência e pelas formas científicas, ou pelo menos pelos pressupostos que marcam a ciência contemporânea, negando-a pelo que tem de mais interessante que é a possibilidade de avançar superando postulados e pensamentos que eventualmente são ultrapassados por novas evidências científicas. Assim, as ciências, como um todo, podem ser menosprezadas pelo poder convincente, de certa medida, e nada crítico das informações disponíveis em novas mídias de ampla comunicação e de custo baixo para acessibilidade, baseadas na troca de interações e em comunidades virtuais dos que comungam de pensamentos alinhados. [6] As redes, que permitem indignação e esperança na fala dos oprimidos contra abusos estatais (CASTELLS, 2017), constituíram-se como campos de disseminação de ódio e discursos contracivilizatórios.

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