Teoria e Prática em Administração (Dec 2017)

Teoria do Conhecimento e Estudos Organizacionais: para Além de um Único Caminho

  • Arnaldo José França Mazzei Nogueira,
  • Ricardo Lebbos Favoreto

Journal volume & issue
Vol. 7, no. 2
pp. 237 – 240

Abstract

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A obra que resenhamos é um bom exemplo de como o texto em formato de livro pode constituir um espaço muito mais pujante que o texto em formato de artigo. A razão é simples: a prolixidade permite maior agudeza no desenvolvimento dos argumentos. Leituras breves, no entanto, constituem uma tendência contemporânea – e isso também na academia. O prefaciador da obra, Professor Maurício Serva, manifesta alegria por se deparar “com um livro finalizado”, “uma vitória num momento em que os livros foram lamentável e inexplicavelmente desconsiderados na avaliação da criação científica em nosso país”. Antes de ler o livro, lemos o artigo “Para além dos paradigmas nos Estudos Organizacionais: o Círculo das Matrizes Epistêmicas”, publicado também em 2015, na revista Cadernos EBAPE.BR. O teor do artigo é semelhante ao de boa parte do livro. Ter lido antes o artigo não amainou, no entanto, o proveito extraído da leitura do livro. Pelo contrário; tratando o texto de temática verdadeiramente complexa, a iteração do conteúdo contribuiu para consolidar a compreensão. O livro tem função muito mais grandiosa, entretanto. Nas 23 páginas do artigo, não é possível empregar a força argumentativa que se emprega no livro. A propósito, as notas de rodapé do livro (nada menos que 133) são altamente colaborativas. Sem cometer excessos, a autora tece notas valiosas, que, em alguns momentos, chegam a concorrer em grau de relevância com o texto principal. A nota 20, por exemplo, registra outra nota relativamente extensa grafada no fim do capítulo 3 do livro “Sociological paradigms and organizacional analysis”, de Burrel e Morgan, uma oportunidade para os leitores tomarem contato com a referida obra, que, como a autora coloca em passagem anterior, “é um dos textos mais influentes da teoria organizacional, embora tenha sido pouco lido” (p. 55). A nota 25, outro exemplo, registra uma citação da obra “A ideia de justiça”, do indiano, laureado em 1998 com o Nobel de Economia, Amartya Sen, na qual se discute o que é comensurabilidade. Surpreende a sensibilidade da autora em trazer ao corpo do debate uma questão em que talvez pouco pensamos, a despeito de, a todo momento, pegarmo-nos usando o termo “incomensurabilidade”, mesmo sabendo da controvérsia que seu uso encerra. Os estudos organizacionais têm sido conduzidos por diferentes caminhos cujos fundamentos epistemológicos podem e devem ser questionados pelo motivo de trazerem consigo concepções de mundo que orientam a compreensão das organizações e o desejo de intervenção nas organizações. Com isso, o fluxo entre epistemologia, teoria do conhecimento, teorias organizacionais, pesquisa e prática está sempre presente, ainda que oculto na maioria das vezes. Ao questionar a forma como tradicionalmente concebemos os estudos organizacionais, Ana Paula Paes de Paula outorga-nos, pela via do exemplo, um atestado de liberdade. Isso porque ela própria, indicando um caminho alternativo – cognominado “círculo das matrizes epistêmicas” -, fá-lo desvencilhando-se das amarras dos paradigmas totalizantes de Burrel e Morgan. A exposição das vulnerabilidades dos paradigmas e a propositura de um novo caminho, ostentadas nessa ordem, constituem o cerne do trajeto percorrido na obra, cujo ápice se acha no capítulo quinto, no qual se apresenta o círculo das matrizes epistêmicas, e culmina nos dois últimos capítulos, dedicados a uma reconstrução epistêmica avançada, a abordagem freudo-frankfurtiana para os estudos organizacionais. Do prefácio às considerações finais, a obra é profusa em discussões epistemológicas deveras significativas para os estudos organizacionais. Nos seus capítulos, autores como Adorno, Aktouf, Freud, Guerreiro Ramos e Habermas encorpam seus argumentos na discussão com outros integrantes de extensa lista de quase 21 páginas de referências da literatura. A maturidade da obra é espelhada na fluidez dos diálogos estabelecidos entre ideias diversas, da autora e de outros autores. Transfere-se ao leitor uma sensação de intimidade que parece ela própria, a autora, guardar com as obras referenciadas. A leitura torna-se, assim, um exercício prazeroso, que nos aproxima de grandes obras do campo de estudos organizacionais e também da história do conhecimento em geral. Seu amplo alcance contrasta com a habitual redução metodológica que marca o campo organizacional. No capítulo primeiro, apresenta-se a evolução histórica dos estudos organizacionais, passando-se por Estados Unidos, Europa e Brasil. O leitor encontrará nessa seção detalhes interessantes e pouco disseminados, como a identificação da época de surgimento da expressão “estudos organizacionais” e dos eventos em torno dos quais se moldaram as características do campo. A história é contada dialeticamente, evidenciando-se a evolução como uma série de “encontrões” entre abordagens hegemônicas e abordagens alternativas. São esses confrontos que subsidiam o capítulo segundo, no qual se discutem a tese da incomensurabilidade e a “guerra paradigmática” vigente num campo seccionado e partidarizado por um conjunto globalizante de uns poucos paradigmas. O popular diagrama de Burrel e Morgan é reproduzido e debatido no capítulo. A crítica embasa-se principalmente na inaplicabilidade da teoria kuhniana de desenvolvimento do conhecimento, de que se valem Burrel e Morgan, às ciências sociais. Na esteira do antecessor, o capítulo terceiro afunila a crítica, achegando-a aos estudos organizacionais. Nesse ponto, a obra fica aberta, então, ao acolhimento de um caminho alternativo, que a autora estreia utilizando-se da proposta habermasiana contida em “Conhecimento e Interesse”. O caminho começa a ser tecido no próximo capítulo, o quarto. Nas ideias de Habermas, a autora acredita encontrar subsídio mais apropriado à explicação do modo como o conhecimento evolui nos estudos organizacionais. A partir da teoria dos interesses cognitivos, concebe, então, um novo referencial, o círculo das matrizes epistêmicas, apresentado no capítulo seguinte. Na proposta engendrada, Habermas assume o papel que, no modelo de Burrel e Morgan, coubera a Kuhn. O capítulo quinto é o coração da obra. As matrizes empírico-analítica, hermenêutica e crítica constituem uma referência que, no mínimo, instiga o leitor a questionar o potencial explicativo do modelo paradigmático. No capítulo sexto, a autora inicia sua jornada final: primeiramente, demonstrando a viabilidade analítica de se pensar, pela lente das matrizes epistêmicas, cada uma das abordagens sociológicas usualmente referenciadas nos estudos organizacionais; depois, nos capítulos sétimo e oitavo, esmiuçando um exemplo de uma reconstrução epistêmica avançada, produto da tese da incompletude cognitiva. Entre as abordagens visitadas no primeiro momento, há aquelas, no meio acadêmico nacional, mais conhecidas, como a funcionalista e a interpretativista, e outras menos, como a humanista e a estruturalista radical. O conteúdo dos dois capítulos finais, por sua vez, almeja-se um referencial teórico aplicável aos estudos organizacionais que se oriente pelo interesse emancipatório, tão caro à proposta habermasiana. Nesses capítulos conclusivos, o desenvolvimento de uma reconstrução epistêmica específica, a abordagem freudo-frankfurtiana, concretiza a teoria anteriormente apresentada pela autora. Construindo conteúdos substancialmente relevantes, a autora serve-se desses capítulos para confirmar a razão da tese central da obra. É neles que se visualiza, “em termos práticos”, sua proposta. Instrumental, o capítulo oitavo exibe, inclusive, caminhos metodológicos e estratégias de investigação para o emprego da abordagem freudo-frankfurtiana nos estudos organizacionais. Ao lado do seu legado principal, o novo referencial representado pelo círculo das matrizes epistêmicas, a obra também nos lega um “efeito colateral” tão importante quanto: a possibilidade (demonstrada) de pôr em suspensão as “verdades” constitutivas dos estudos organizacionais. Quando se considera o referencial proposto apenas uma dentre outras perspectivas, o exercício de repensar os estudos organizacionais coaduna-se com a expectativa de, permanentemente, verem-se emergir “novas teorias” do conhecimento. Ideia-se, então, um título levemente remodelado: “Repensando os estudos organizacionais: por novas teorias do conhecimento”. Afinal, o caminho sugerido pela autora não é somente um caminho, senão uma espécie de orientação que pode conduzir-nos a múltiplos caminhos. Sem deixar de lado o rigor intelectivo, a proposta acolhe, ao invés de expulsar, e, como consequência, amplia o campo dos estudos organizacionais, ao invés de restringi-lo a um pensamento único ou a um conjunto pré-concebido de alternativas postas à disposição em um mostruário.

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