Estudos Interdisciplinares em Psicologia (Dec 2021)
Psicologia e assistência social: diálogos possíveis
Abstract
A política pública de assistência social representa, na atualidade, um dos principais campos de emprego para psicólogos brasileiros, sendo uma das responsáveis pela expansão e interiorização da psicologia no país (Macedo & Dimenstein, 2011). Apesar disso, tem se evidenciado uma escassez na produção científica nesse campo de atuação psicológica, tanto em relação ao lançamento de artigos quanto de livros que abordem acerca da relação entre a psicologia e a assistência social. Em face dessa lacuna no conhecimento científico sobre a área supracitada, o livro Psicologia e assistência social: encontros possíveis no contemporâneo disponibiliza ao público leitor um conjunto de textos escritos por pesquisadores de diferentes partes do país que compõem uma visão crítica sobre temas centrais que atravessam a atuação de psicólogos na política de assistência social brasileira. A diversidade de temas abordados na obra é um ponto de destaque. Outro aspecto, que também merece ser apontado, é o formato diferenciado de escrita acadêmica presente em alguns dos trabalhos, a exemplo do capítulo introdutório (construído em forma de cartas) e do capítulo doze (“Rádio no livro”) que apresenta um arranjo textual com desarticulações no corpo, formato e timbre da escrita. Estes escritos, distintos da redação acadêmica usual, nos instigam a pensar, conforme Bruna Battistelli e Lílian Cruz: “Quem disse que pesquisas precisam ter a mesma forma de escrita?”. A atualidade das discussões também é um ponto forte do manuscrito. Os textos produzidos ecoam os debates atuais na interface psicologia e assistência social, conectando-se com as implicações do itinerário histórico, social e político do país, em uma convocação para pensarmos novas possibilidades de atuação em psicologia na política de assistência social. Um ponto diferencial nesta obra, que poderá ser verificado pelo/a leitor/a, é que as discussões e experiências apresentadas não se restringem apenas à proteção social básica, operacionalizada no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). O livro contém capítulos que tratam especificamente da assistência na proteção social especial, de média e alta complexidade, cujo dispositivo de referência é o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Chama atenção ainda o rol de autores que compõem este livro-texto. São docentes, pesquisadores e profissionais com experiência na política de assistência social. Alguns, além de estudarem, em cursos de mestrado e doutorado em psicologia social, o campo da assistência social, também atuam diretamente em alguns de seus dispositivos. Apesar da didática do livro, mencionada acima, um fator que poderá provocar desconforto ao leitor/a é a paragrafação. No geral, os capítulos possuem parágrafos longos (existe página com um único parágrafo), o que torna a leitura menos fluida e cansativa. Tal limitação, entretanto, não invalida o relevante conteúdo textual. Feito esse breve preâmbulo, nas linhas seguintes apresentaremos a estrutura do livro. Organizada por Lílian Rodrigues da Cruz (UFRGS), Neuza Maria de Fátima Guareschi (UFRGS) e Bruna Moraes Battistelli (UFRGS), a obra é constituída por treze capítulos, nos quais os autores abordam as questões a partir de uma relação com o contexto social, econômico e político em que estão inseridos. O capítulo introdutório, Cartas à Assistência Social, é tecido por meio de uma forma de escrita não usual no cenário acadêmico: a carta. Nele, as autoras Bruna Moraes Battistelli e Lílian Rodrigues da Cruz, em um formato dialógico, discorrem sobre o cotidiano de trabalho na política de assistência social, tendo como pano de fundo a conjuntura social e política a qual vivenciaram a partir de 2016. São produzidas quatro cartas remetidas a diferentes destinatários. A primeira, endereçada a todos os que trabalham na área da assistência social, busca refletir sobre o que as autoras denominam processo de desmonte da política de assistência social, pautado sob a égide do neoliberalismo que, segundo elas, põe em risco os direitos sociais. A segunda carta, direcionada aos profissionais que realizam a acolhida na política de assistência social, reflete sobre a visão que estes possuem acerca do/a usuário/a, da forma como se propõem a contar suas históricas e do tipo de relação que se pretende estabelecer com eles. A terceira, cujo destinatário é a Assistência Social, busca cumprimentá-la pela oportunização de um espaço de trabalho aos psicólogos que, mesmo não compreendendo muito bem o seu papel na assistência social, vêm se aventurando nesse campo. Na última carta, enviada pela Assistência Social aos seus trabalhadores, são expressos os desafios e limites que perpassam a política pública de assistência social desde o seu início (a exemplo do reduzido orçamento e estereótipos em relação aos seus destinatários). Apesar do uso de formas diferentes de redação acadêmica ser legítimo, as notas produzidas nesse capítulo-ensaio devem ser observadas com ressalvas pelo/a leitor/a, já que as autoras partem de um lugar de fala situado. Sendo assim, algumas discussões são reportadas sem sólida fundamentação, aproximando-se da visão de mundo pessoal das autoras. Como exemplo, pode-se citar o questionamento destas ao chamado pente fino realizado pelo governo federal no Programa Bolsa Família, ano de 2017, que bloqueou o benefício de algumas famílias. “Por que o interesse insistente no Bolsa Família?” O/a leitor/a observará que elas não partem da concepção de irregularidades na aquisição do benefício, em que a existência de fraudes, além de afetar os gastos públicos, representa uma violação àqueles que realmente necessitam do Bolsa Família. Assim, nota-se que as autoras tangenciam a questão, trilhando um percurso argumentativo que expressa mais uma visão pessoal. No segundo capítulo, É possível libertar a psicologia? Caminhos em direção à psicologia da libertação, Maria Luiza Rovaris Cidade e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, tendo como referência a obra de Martin-Baró e da psicóloga brasileira Silvia Lane, buscam refletir sobre os caminhos em direção a psicologias da libertação no contexto latino-americano. Para tanto, os autores, incialmente, recuperam um pouco da história da constituição da psicologia como ciência, sua relação com o positivismo e as práticas hegemônicas em psicologia ao longo dos anos. As linhas finais do texto são destinadas à discussão da possibilidade de libertação da psicologia, a partir dos pressupostos da psicologia da libertação e do compromisso social. O vínculo familiar e comunitário como operador que conecta a psicologia e a política de assistência social é título do capítulo três. Nele, Luciana Rodrigues e Neuza Maria de Fátima Guareschi apresentam o vínculo, enquanto operador presente tanto na psicologia quanto na política de assistência social, como um conector estratégico que possibilita a articulação entre as duas áreas. Ademais, além de conectar essas duas redes distintas, esse conector também representa um ponto de ancoragem para a atuação do/a psicólogo/a no âmbito dessa política. Um ponto no capítulo que deve ser visto com ressalva pelo/a leitor/a é a afirmação das autoras de que o CRAS “tem como equipe mínima de referência (independente do porte do município) profissionais de nível superior que incluem [...], preferencialmente, um psicólogo” (Rodrigues & Guareschi, 2019, p. 58). Com a Resolução nº 17/2011, que atualiza a NOB-RH/SUAS/06, o psicólogo passou a integrar, de forma obrigatória, a equipe de referência do CRAS (Brasil, 2011). No capítulo seguinte, O Trabalho na política de assistência social: contribuições da análise do trabalho como atividade, Helena de la Rosa da Rosa e Fernanda Spanier Amador problematizam as formas de trabalhar e subjetivar na política de assistência social, a partir do trabalho em um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). As autoras utilizam a perspectiva de atividade, tendo como marco teórico condutor o pensamento foucaltiano de governamentalidade e biopolítica e, ainda, a macro e micropolítica de Deleuze e Guattari. A psicologia e a produção do perigo no SUAS. Caminhos perigosos? intitula o capítulo cinco. Escrito por Adriana Garritano Dourado e Andrea Scisleski, o texto revela como a práxis psicológica no SUAS reverbera a lógica do controle e vigilância, a partir da produção do perigo (o perigoso é aquele fora dos padrões), funcionando como dispositivo de segurança junto ao público atendido, policiando e normatizando sua conduta. O capítulo seis, desenvolvido por Anete Regina da Cunha e Luis Artur Costa, traz como título a Religião e a assistência na salvação pelo trabalho: governamentos da pobreza em uma mirada genealógica. Neste escrito, os autores abordam a relação entre a religião e a política de assistência social, indicando como a prática de caridade e benemerência cristã continua perpassando o trabalho no campo da assistência social, implicando em modos de controle da pobreza. Prosseguindo o debate em relação à noção de caridade e controle da pobreza, no texto “Não estávamos seguros” - tensionamentos entre os discursos do direito e da caridade no campo da assistência social, Gabrielly da Fontoura Winter e Betina Hillesheim analisam os discursos enunciados no jornal Zero Hora (importante meio de comunicação do sul do país) a respeito da assistência social. Nestes, as autoras identificam concepções que relacionam a assistência social às práticas de caridade, excluindo desta a noção de direitos sociais. No capítulo oito, O silenciamento da violência, produzido por Marisa Batista Warpechowski e Luciane De Conti, o/a leitor/a apreciará um texto que trata da violência vivenciada por adolescentes em contexto de vulnerabilidade e exclusão social. Por meio de uma abordagem crítica, as autoras buscam desnaturalizar tal fenômeno, examinando a sua incidência entre os jovens da periferia de Porto Alegre. Para esse propósito, elas inicialmente discutem o aumento da violência nessa parcela da população, com destaque para o crescente número de homicídios. Ganha contorno, também, a menção à violência cometida pelo próprio Estado contra aos adolescentes da periferia, por meio da repressão policial ou da precarização das políticas públicas, contribuindo para o aumento da violência e das mortes, já que se reduz as possibilidades de inclusão da população. O capítulo é finalizado com a apresentação de uma experiência de escuta a um grupo de adolescentes acolhidos em um CREAS que, por meio de atividades de rodas de conversas, encontraram um espaço para escuta, acompanhamento, trocas de experiências e discussão acerca da violência. Em “Corações de papel reciclável”: encontros e desencontros na socioeducação, Maria Dornelles de Araújo Ribeiro e Sandra Djambolakdjian Torossian tratam das medidas socioeducativas no contexto brasileiro, a partir da história de um adolescente em acompanhamento no Programa de Oportunidades e Direitos (POD Socioeducativo), em uma Fundação na cidade de Porto Alegre, RS. O adolescente, chamado de Vini, por meio de um blog reconta sua história de vida e sua experiência durante a participação no programa. As narrativas transparecem os encontros e desencontros em meio às condicionalidades impostas pelo programa, as quais Vini tem dificuldades para cumpri-las. Seguindo essa linha, o capítulo “Socorro, meus filhos estão no abrigo!”: histórias do/no acolhimento institucional, escrito por Bruna Moraes Battistelli, Neuza Maria de Fátima Guareschi e Lílian Rodrigues da Cruz, discute o acolhimento institucional de crianças e adolescentes vítimas de situação de negligência e violência, a partir da narrativa do caso de Maria, uma mãe que tem cinco filhos (do total de seis) em acolhimento institucional. São mencionados os efeitos da judicialização e do controle institucional na dinâmica das relações e vida dos acolhidos, bem como as dificuldades em se adequar às rígidas prescrições de rotina no acolhimento institucional. No capítulo dez, Vulnerabilidade e acesso: espaços de resistência e negociações nas políticas sociais, Camilla Fernandes Marques, Anita Guazzelli Bernardes e Priscilla Lorenzini Fernandes de Oliveira abordam a relação entre o acesso às políticas sociais e a vulnerabilidade, com o intuito de refletir acerca da produção de modos de negociação com as formas de condução de condutas. Alexandre Missel Knorre apresenta o capítulo “Rádio no livro”: o dispositivo clínico “Rádio na Rua” em movimento de escrita, em que narra o contexto de desenvolvimento do dispositivo “Rádio nas Ruas”, ferramenta utilizada para o trabalho com pessoas em situação de rua, em diferentes espaços da cidade. O texto é escrito de forma diferenciada, a partir de diálogos entre personagens que narram essa experiência. O último capítulo, Ortopedias políticas e a produção de “mulheres universais” na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), formulado por Simone Maria Hüning e Érika Cecília Soares Oliveira, problematiza a normatização das subjetividades femininas nas políticas públicas de assistência social, na qual a inclusão da mulher ocorre por meio de uma cidadania limitada e modelada por uma lógica neoliberal e patriarcal, onde estão presentes as identidades de mãe, esposa e mulher ideal. À guisa de conclusão, podemos destacar que a presente obra resenha é enriquecida pela variedade conceitual, teórica e de escrita que a perpassa ao longo dos trezes capítulos, oferecendo ao leitor/a uma gama de possibilidades metodológicas. Os capítulos que a compõem são articulados em uma perspectiva crítica que objetiva analisar o campo das políticas públicas de assistência social, contribuindo para subsidiar tanto teoricamente quanto de forma prática a atuação em psicologia nessa política pública. Sendo assim, o livro é de suma importância para profissionais (que buscam atualização), estudantes e pesquisadores da psicologia social.
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