PROA: Revista de Antropologia e Arte (Dec 2010)
Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas
Abstract
Os instigantes textos de Els Lagrou e Shirley Campbell publicados nessa sessão dialogam, em maior ou menor grau, com uma polêmica sobre o mesmo tema que ocorreu há quase 20 anos, na Inglaterra, e cuja transcrição se tornou um clássico para quem se aventura pela antropologia da arte. Em 1993, houve uma série de debates envolvendo questões controversas na antropologia, posteriormente publicados na coletânea Key Debates in Anthropology, editada por Tim Ingold. Dentre os debates, um chamou especial atenção, sobretudo para os antropólogos que, pouco a pouco, voltavam a lidar com a produção de cultura material e também com performances, tanto em contextos ocidentais, quanto em realidades “não-ocidentais”. Trata-se da discussão travada entre Joana Overing, Peter Gow, Jeremy Coote e Howard Morphy acerca da possibilidade do uso transcultural da noção de estética. O acalorado debate não mobilizou apenas esses quatro intelectuais. Além deles, uma série de outros nomes importantíssimos para os estudos da interface entre a antropologia e as artes fizeram-se ouvir: da platéia, pronunciaram-se, entre outros, Alfred Gell e Robert Layton. Howard Morphy e Jeremy Coote, dois pesquisadores que, naquela época, já produziam avidamente sobre o tema, manifestaram-se a favor do uso da noção de estética como categoria transcultural. Por outro lado, Peter Gow e Joanna Overing assumiram posição contrária à aplicação universal do termo “estética”. De importância incontestável para quem trabalha com as artes de uma perspectiva antropológica, esse debate vem sido lido e citado por vários autores. Contudo, nota-se que a questão fundamental “pode o termo estética ser usado universalmente?” não foi ainda satisfatoriamente respondida e permanece como um dilema a dividir a comunidade acadêmica. Por conta desse impasse, a Proaconvidou duas pesquisadoras que enfrentam essa questão em seus trabalhos. As antropólogas Els Lagrou e Shirley Campbell aceitaram o desafio de produzir, cada uma, um texto para nossa sessão Debates, retomando a mesma questão. De acordo com Anthony Shelton (1992), o grande obstáculo à resolução do impasse advém do fato de não estar devidamente claro o que se julga por “estética”. A definição do termo deveria ser estabelecida de antemão, para que um debate efetivo sobre o conceito pudesse ser realizado. Segundo o autor, a polissemia do termo “estética” nos textos produzidos pelas ciências humanas é tão grande, que seria preciso todo autor se situar, de antemão, sobre a acepção do termo que está utilizando. De fato, esse parece ter sido o nó do debate de 1993, em Manchester. Howard Morphy e Jeremy Coote advogavam que a categoria é, sim, aplicável a todas as sociedades, partindo do pressuposto de que todas as pessoas possuem uma sensibilidade estética (ligada à percepção sensorial e aos julgamentos dela decorrentes), embora sempre culturalmente moldada. Já Peter Gow e Joanna Overing se diziam contrários ao uso generalizado do conceito, com base no argumento de que se trata de uma área de conhecimento específica, cujo surgimento e desenvolvimento se deram no interior da história das artes no Ocidente. Vemos, portanto, que as concepções de estética que estavam sendo discutidas eram bastante diferentes entre si. Ninguém duvidaria que a sensibilidade estética faz parte da “natureza” humana, como professaram Morphy e Coote. Ao mesmo tempo, poucos discordariam de que, se tomarmos a Estética como uma vertente da Filosofia consolidada no século XVIII, seu uso como categoria universal não será plausível. Ao contrário do que ocorreu no primeiro debate, ambos os textos que foram escritos especialmente para a Proa partem de uma mesma idéia de estética. Como resultado, os dois textos têm muito mais semelhanças do que oposições entre si. Els Lagrou, professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Shirley Campbell, professora visitante do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Australia National University, em Canberra, advogam, ambas, a necessidade de percebemos que termos como estética e arte podem ser aplicados a vários contextos sociais, desde que ambos sejam usados de forma menos “dura” e etnocêntrica. O consenso das autoras em relação à transculturalidade da noção de estética deve-se, em parte, ao desenvolvimento recente de estudos que têm a cultura material e as performances de várias sociedades como objetos de reflexão. Por outro lado, a redefinição dessas noções por parte do próprio campo artístico ocidental auxiliou a perceber que, nem mesmo no seu meio de origem, esses conceitos podem ser pensados segundo as definições clássicas, atreladas, por exemplo, à idéia do “belo” ou da genialidade do artista. Um outro aspecto interessante, que sobressai nas duas contribuições, é a inter-relação entre a Antropologia da arte e Antropologia das coisas ou objetos. Pensar práticas e objetos artísticos sob a perspectiva antropológica significa desvendar relações sociais e intencionalidades neles condensados ou por eles transmitidos – ponto que, coincidentemente, está presente em outras seções desse número da Proa, inclusive na Galeria