Horizontes Antropológicos (Dec 2001)

A mística do Pirarucu: pesca, ethos e paisagem em comunidades rurais do baixo Amazonas

  • Rui Sérgio S. Murrieta

DOI
https://doi.org/10.1590/S0104-71832001000200006
Journal volume & issue
Vol. 7, no. 16
pp. 113 – 130

Abstract

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Este artigo é uma análise das práticas e significados que permeiam a pesca do pirarucu nas comunidades rurais da Ilha de Ituqui, no Baixo Amazonas, Pará. O pirarucu é o maior peixe de escamas da Amazônia e também um valioso produto de mercado devido ao seu papel privilegiado na culinária local. A pesca do Pirarucu é uma das atividades mais antigas no Baixo Amazonas, remontando a tempos pré-coloniais. Para os pescadores que habitam a ilha de Ituqui, a captura do pirarucu pode representar não apenas o retorno econômico garantido de uma jornada de trabalho, como também revestir-se de uma série de significados e vivências ontologicamente estruturadas no dia-a-dia e na identidade dos pescadores. Conflitos sociais e disputas pessoais são intensificadas ou reduzidas, afeições são confirmadas e laços sociais refeitos através das práticas e encontros vivenciados durante uma viagem de pesca aos lagos próximos. Além da prática em si, tais viagens tornam-se referências mnemônicas e afetivas da paisagem, do evento de captura e do próprio sentido de lugar; resultando numa unidade processual conectada a muitas esferas pessoais e sociais de significado, as quais são de difícil compartimentalização. No meio de tantos aspectos motivadores, disputas e pescarias "irracionais" acontecem em Ituqui. Locais de pescaria são possessivamente guardados e "fronteiras territoriais" sutilmente estabelecidas entre comunidades e famílias. O direito ao recurso e, por extensão, aos significados e emoções que ele incorpora, torna-se um luxo ferozmente protegido por alguns. O decréscimo da população de pirarucus, as novas tecnologias de pesca, a alta demanda do mercado pelo peixe e a "mística" que ainda permeia a captura do animal colocaram muitos pescadores num dilema em que a sobrevivência desta atividade parece colidir com o que os desenvolvimentistas e ambientalistas chamam de "racionalidade" da conservação.This article aims to analyze the practice and meanings that permeate pirarucu fishing in rural communities of the Lower Amazon, State of Pará, Brazil. The pirarucu (Arapaima gigas) is the largest scale fish of Amazonia and is also an important market product, due mainly to its privileged role in the regional cuisine. Pirarucu fishing is one of the earliest human activities of the Lower Amazon, dating back to pre-colonial times. For many fishermen who live on Ituqui Island, catching a pirarucu represents more than a economic security, but also a set of meanings and experiences ontologically structured in their everyday life and identity. Social conflict and personal disputes are intensified or lightened, and old affections and social ties are reinforced through the practices and encounters experienced during a fishing trip to one of the nearby lakes. Beyond the practice per se, these fishing trips trigger mnemonic and affective references to the landscape and the momentum of capture, and the sense of place, resulting in a processual unity intimately connected to personal and social meanings that cannot be compartmentalized. In the midst of so many motivations behind pirarucu fishing, aggressive disputes and irrational captures may take place. Fishing spots are kept secret and territorial bonds are protected. Rights to this resource and, by extension, over the meanings and emotions to which it is connected becomes, to a certain extend, a luxury aggressively protected by some. The decrease of the pirarucu stocks, new fishing technologies and the great demand and "mystique" still surrounding its capture have posed a dilemma to the fishermen: the survival of the pirarucu "fishing" collides with what the environmentalists have called the rationality of conservation.

Keywords