Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (Oct 2021)

Reflexões sobre a atuação do Direito pelo viés tecnológico

  • Guilherme Gomes Vieira,
  • Alberto Carvalho Amaral

Journal volume & issue
Vol. 3, no. 2

Abstract

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Dando continuidade aos trabalhos do ano 2021, o segundo número do terceiro volume da Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF) reuniu discussões sobre Direito e tecnologia: acesso à justiça, pandemia e serviços em rede. Situações de crise podem ser concebidas como ações do ambiente externo que modificam o equilíbrio natural e proporcionam a perda de controle das situações cotidianas, impactando diretamente nas escolhas e orientando a construção de um contexto com diferentes alternativas (VIGH, 2008). Nesse sentido, pode-se conceber a pandemia causada pela COVID-19 como uma situação de crise – mais especificamente, uma crise sanitária –, mas que apresentou repercussões em diversas esferas (política, social, econômica, dentre outras). Na atual sociedade, que se conecta e se interrelaciona tendo como pressuposto interações desenvolvidas em, para ou com o auxílio de instrumentos tecnológicos, uma doença global afetar, também, diversas áreas conectadas, com maior ou menor intensidade a depender de contextos tecnológicos – maior ou menor acesso, qualidade de conexão, detenção de equipamentos eletrônicos –, mas que também são sociais – inclusão ou exclusão em contextos que a conectividade se impõe, exclusão tecnológica –, culturais e de outras ordens. Da mesma forma, o âmbito jurídico foi impactado pelo contexto pandêmico. Diversas práticas foram revisitadas e reinterpretadas, a fim de se compatibilizarem com a nova realidade. Exigiu-se, portanto, que os atores do Sistema de Justiça revisitassem suas posturas e configurações organizacionais, a fim de contemplar as necessidades e possibilidades inseridas no paradigma contemporâneo, o qual consiste em pressupostos científicos correlacionados à nova perspectiva de realidade (KUHN, 1998, p. 219-232). Dentre as diversas organizações que fazem parte do Sistema de Justiça, destaca-se a Defensoria Pública, a qual possui a função constitucional e institucional de, na qualidade de instrumento do regime democrático, promover e proteger os direitos humanos e defender os interesses das populações vulneráveis (MOREIRA, 2019). Sob a perspectiva de viabilização do acesso à justiça a segmentos sociais vulneráveis, a Defensoria Pública visa à proteção de hipossuficientes econômicos – indivíduos que não possuem condições financeiras de arcar com advogados particulares – e de hipossuficientes organizacionais – populações vulneráveis decorrentes de situações não financeiras (LUIZ LEONARDO E GARDINAL, 2020) –, a exemplo de idosos, crianças, LGBTQ+, indígenas, quilombolas, mulheres em situação de violência doméstica, pessoas apenadas, dentre outros. São esses grupos, socialmente vulnerabilizados (SANTOS, 2019, p. 20), que se vêem diante de dificuldades estruturais agravadas de forma drástica e que necessitam, com urgência, de um órgão não tradicional, como instrumento emancipatório que lhes possibilite a diminuição das adversidades, mesmo quando não seja o caso de socorrer-se de medidas jurídicas, inaugurando opções mais amplas de concretizar postulados básicos de cidadania (AMARAL; BELMONTE AMARAL, no prelo, p. 77). Assim, as possibilidades de atuação da Defensoria, inicialmente concebidas exclusivamente em relação a pessoas que não detinham condições financeiras, foram expandidas, propiciando, dessa forma, um leque plural de participação ativa, em atenção ao reconhecimento da Defensoria Pública como instrumento do regime democrático e instituição promotora dos direitos humanos. A expansão demanda um órgão que se imiscua, com mais profundidade, nos celeumas democráticos e de cidadania presentes na sociedade brasileira e que assuma o protagonismo enquanto instituição essencial para a concretização o mandato constitucional de diminuição das desigualdades e primazia da dignidade da pessoa humana como objetivo. Nesse contexto, percebe-se que a atuação da Defensoria Pública está intrinsecamente relacionada com a concretização de políticas públicas (VIDAL, 2019), resguardando, portanto, o interesse de segmentos sociais desamparados mediante a atuação judicial, extrajudicial, individual, coletiva, nacional e internacional. Segmentos sociais com maior vulnerabilidade tiveram um maior impacto em razão da pandemia causada pela COVID-19, a exemplo de comunidades periféricas, pessoas em situação de rua, indivíduos privados de liberdade e populações que residem em locais sem saneamento básico (SOUZA NETTO; FOGAÇA; GARCEL, 2021). Além da presença do luto, que alcançou milhares de famílias e é marca indelével de um sentimento que infelizmente permanecerá para além dos anos pandêmicos (DANTAS; CASSORLA, 2020), o grande número de crianças que se viram sem pai ou mãe – 113 mil crianças perderam pais, mães ou ambos; se incluídos adolescentes, o número ultrapassa 130 mil (SANCHES; MAGENTA, 2021)–, viu-se a precarização de instrumentos tradicionais de organização social, com a falácia da manutenção da economia a todos os custos, mesmo humanos, bem como se evidenciou, paradoxalmente, a acumulação de renda de forma inédita na história nacional recente, com o aumento sensível do número de bilionários em 2020 (11) e 2021 (40) (SENA, 2021; BRASIL..., 2021), e da pobreza extrema (12,83%, em fevereiro de 2021) (NÚMERO..., 2021). É importante pontuar que diversas pessoas, incluindo usuários da Defensoria Pública, justamente em razão da situação de exclusão digital, não conseguem usufruir de recursos tecnológicos, demandando atenção especial do Estado para a garantia de seus direitos, notadamente a fim de se assegurar o acesso à justiça (ALVES, 2021; SIQUEIRA, LARA e LIMA, 2021). A vulnerabilidade digital, que é uma nova faceta da exclusão tecnológica em tempos da indústria 4.0, agrega interseccionalidades que impactam de forma abrangente e renovam espaços de ausência de cidadania quase inalcançáveis pelos não inseridos nos mundos virtuais de aplicativos e comunidades. Desse modo, faz-se relevante a atuação em rede, no sentido de se estabelecer diálogos entre diferentes organizações, a fim de consolidar e aprimorar as atividades conjuntas desenvolvidas, ampliando as possibilidades de alcance dos desassistidos e invisibilizados, bem como permitindo congregar formas múltiplas de prestação do serviço defensorial, permitindo o acesso mais amplo à justiça por diversos viéses. Dessa forma, nota-se que a temática proposta no presente dossiê apresenta notável importância para a Defensoria Pública e justifica a escolha da abordagem escolhida. No texto Acesso à justiça a partir de aplicativos que funcionam como meios consensuais de solução de conflitos de consumo no ambiente digital, Fabrício Germano Alves, Pedro Henrique da Mata Rodrigues Sousa e Vinícius Wdson do Vale Rocha pretendem identificar mecanismos digitais disponíveis para facilitar o acesso à justiça pelos consumidores, indagando-se acerca da responsabilização pelas agências reguladoras dos mecanimos digitais de auxílio e assistência, que foram fragilizados pelo contexto da pandemia e prestigiar soluções que viabilizam a solução de conflitos. Ederson Rabelo da Cruz e Luan Christ Rodrigues, em Internet e l'informazione come diritti fondamentali che condizionano l'accesso alla giustizia nell'ambiente digitale, irão discorrer sobre a dependência do acesso à internet e à informação para a consolição do acesso à justiça em ambiente digital. O acesso à internet em tempos de Covid-19: garantia da igualdade material no direito à educação básica, de Lisiane Beatriz Wickert, Janice Scheila Kieling e Diego Luiz Trindade, indaga acerca da possibilidade de ser exigida, do Poder Público, a implementação do acesso à internet, durante a pandemia, para alunos da educação básica enquanto medida essencial para a salvaguarda desse direito prestacional para alunos carentes. No artigo Bioética, Biodireito e Covid-19, de autoria de Edison Tetsuzo Namba, há uma síntese da temática da bioética, mínimo essencial para intervenções tecnológicas no humano, em conexão com o biodireito, que guardam relevância para o cenário do Covid-19. Com objetivo de analisar criticamente o instituto do confisco alargado, previsto no art. 91-A, do Código Penal, Fernanda Luiza Horácio Buta, em Confisco alargado de bens: a inclusão dos déficits da regulação dos riscos na esfera penal, irá analisar essa medida penal, enfatizando-a em um direito penal expansivo, numa sociedade de riscos, e que necessita de delimitações para a manutenção de sua legitimidade, adequação e necessidade. Em A violência doméstica contra a mulher e o acesso das vítimas à justiça em tempos de pandemia de Covid-19, de Bianca Rodrigues do Nascimento, há uma análise dos efeitos decorrentes do isolamento social para as mulheres vítimas de violência de gênero no Brasil e o papel desempenhado pela Defensoria Pública. Por fim, reforça-se o compromisso da Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal em receber contribuições e realizar publicações acerca de propostas que apresentem um olhar crítico relativo à realidade, de modo a compreender fenômenos sociais.

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